A menina de 6 anos que realizou o sonho de ser cientista
O texto a seguir é uma linda história totalmente verdadeira e emocionante de uma pessoa que superou barreiras e não deixou sua vida ser definida por um “rótulo”.
A menina de 6 anos que realizou o sonho de ser cientista
Se podemos começar usufruindo do nosso poder imaginativo, porque não?
Bem, imaginem uma garotinha de 6 anos de idade, briguenta, curiosa, agitada, chorona, alegre, destemida, faladeira! Essa era eu. Dona do meu quintal, da minha sala de aula, das minhas esferas sociais… eu sempre me destacava, por bem ou por mal, eu nunca fui uma criança “típica”.
Quando não estava cavando buracos e encarando formigas, estava mergulhada por horas na tv da minha cozinha ou na da minha mente, vivendo em outro plano – o imaginativo. E entre o mundo real e quarta dimensão, eu me alimentava de um desejo: queria ser inteligente, queria ser desbravadora, queria que as pessoas me admirassem pelo o que eu fiz por elas. Mas os sonhos eram bem mais fáceis que a realidade. Até a quarta série eu me dei muito bem na escola, muito proativa e criativa. Mas quando entrei na quinta série (11 anos) e a matemática surgiu com outras matérias que demandavam mais atenção, as coisas desandaram. Minha imaginação, as outras crianças, o parquinho lá fora, os sons do corredor, os amigos se mexendo nas carteiras… tudo tirava minha atenção. Nessa época, tentei tirar uma dúvida na aula de biologia e outra na de matemática, as duas professoras me responderam a mesma coisa: “essa pergunta é tão boba que eu me recuso a responder”. Elas faliram minha confiança. Eu nunca mais perguntei nada. Escondi minhas questões, minha vergonha e minha culpa atrás da minha sociabilidade – e eu era ótima nisso! Tão ótima que em toda reunião de classe discutiam onde me sentar, porque eu era amiga de toda a classe e conversava aos cântaros! Era amiga dos funcionários, ganhava todas as gincanas, agitava inovações pelo colégio, matava aula em cima do telhado do colégio para que não me encontrassem e mesmo assim me amavam.
Minha adolescência era como um trem descarrilhado: impulsiva, agressiva, destemida. O colégio e a família sentiram. Eu não me calava. Eu sentia raiva e dor por não me encaixar em nenhum lugar. Veio o vestibular. TRÊS longos anos de sofrimento! Eu estudava muito e não entrava! Eu ficava sempre tão perto… meus pais sofriam com meu sofrimento. Até que na terceira tentativa passei de quarta chamada. Tudo bem, eu havia entrado na universidade que escolhi, no curso que sonhava: Ciências Biológicas!
Foi então que começou outra peregrinação: numa faculdade integral, com disciplinas tão diferentes e tantas opções de álcool e drogas, por onde começar? A minha parte impulsiva bebeu até cair em cada festa. A minha parte determinada, estudava até de madrugada porque amava e respeitava o curso que fazia (ah! essas facetas múltiplas). Passado o primeiro ano, as temerosas “dependências” começaram a se acumular. Eu fiz três vezes química (porque estequiometria virava bagunça na minha mente), três vezes paleontologia (porque não consegui decorar o nome das pedras na prova prática) e três vezes zoologia de invertebrados (até hoje, não sei porque). No total, foram 12 ou 13 matérias em que peguei dependência. Eu estudava TANTO! eu ajudava as pessoas a entender a matéria… eu emprestava meu caderno. Até que numa manhã derradeira, após receber uma nota péssima em genética de populações e ver que a amiga que estudou comigo tirou 96 (!), eu realizei: EU SOU BURRA.
Eu sentei no gramado da faculdade com a prova em mãos e chorei… eu lembrei de todos os anos de escola, das professoras me dizendo que eu era burra, que devia surda, porque não ouvia elas! eu tive que aceitar que o que elas diziam era uma verdade, e essa verdade era comprovada pela prova em minhas mãos. Enxuguei as lágrimas, ergui a cabeça e disse pra mesma: “ok Daiane, você pode ser burra, ninguém é perfeito, o que importa é que você é determinada pra um caralh@ (eu sempre fui desbocada), e que você vai estudar mais que os outros, vai dormir menos, vai sair menos, mas vai conseguir chegar onde quer porque você não aceita derrotas”.
Com isso em mente, eu me formei no tempo certo, entrei no mestrado e o terminei precisando pedir 6 meses de extensão de prazo. Fiz a prova de doutorado, passei, mas não aceitaram o meu projeto. Então eu estudei um ano como aluna especial fazendo todas as disciplinas. Nesse ano, eu aprendi a falar inglês na marra, chorando de cansada de tanto estudar! No final do ano tentei a prova novamente e passei em segundo lugar! Assegurei minha bolsa, era uma federal, um curso conceituado… que sonho!!!! No segundo ano meu projeto entrou quase sem querer na área de ecologia molecular, eu precisei aprender a manipular DNA vegetal e análises absurdas! AÍ COMEÇA A MINHA NOVA ESTÓRIA…
Três colegas tentaram me ensinar a rotina laboratorial, todos notaram minhas dificuldades, mas com paciência (sou grata pra sempre), conseguiram me ensinar. Na época, eu notei um padrão (o meu estalo!!!): todos faziam as coisas da mesma maneira e eu ao contrário. Se abriam um reagente com a mão direita, eu usava a esquerda. Se guardavam as luvas em um sentido, eu guardava em outro. Se começavam uma reação pelo reagente y, eu começava pelo x. Alguma coisa estava errada comigo. Na mesma época, eu fazia dança e inglês e reparei que o padrão se repetia!!! Na dança, eu confundia esquerda/direita, alto/baixo. No inglês, apesar de ir muito bem, eu nunca não focava na gramática, ficava viajando no conteúdo dos textos, criando estórias pessoais. O padrão era: todos fazem de um jeito, eu faço de outro.
Conversei com a minha mãe e irmã, que naquela altura faziam uma pós em neuropsicopedagogia clínica (obrigada universo!). Elas sugeriram um diagnóstico e pediram para eu procurar um especialista. Cheguei até um anjo chamado “minha atual terapeuta”, que é neuropsicóloga. Ela fez uma bateria completa de testes (exame de imagem, 6 horas de questionários, testes de memória, entrevistas sobre emoções, mais um caminhão de coisas) e me disse: “Day, se houvesse uma imagem pra definir TDAH, ela seria uma foto sua”. Rimos. Ela perguntou se eu queria saber meu Q.I., e com medo eu respondi que sim. Pra minha surpresa, era acima da média. EU NÃO ERA BURRA!!!!!!! Eu tinha TDAH! Era “só” isso.
Entrei no carro e chorei. Chorei por estar aliviada, por me sentir desassistida tantos anos, por ter sofrido tanto. Chorei muitas vezes naquela semana.
Voltei para os últimos dois anos do doutorado com ajuda dela, de uma terapeuta comportamental cognitiva e de uma terapeuta espiritual (que me ajudava com meditação). Nenhuma achou que eu precisava ser medicada, porque estava bem assistida e dando conta, mas usei fitoterápicos e florais com a supervisão delas. Mesmo com tanta ajuda, tive crises de ansiedade, hiperatividade, hiperfoco, ataque de pânico, depressão. Porém, essas profissionais, meu marido, meus amigos e minha família nunca desistiram de mim! Nunca duvidaram do diagnóstico, me acolheram e me consolaram. E ter uma rede de apoio fez toda a diferença!
Meu orientador do doutorado negou o diagnóstico, alguns colegas também. Mas eu compreendi a limitação pessoal em acreditar em um distúrbio “invisível aos olhos”. Assim como eles, outras centenas de orientadores e colegas não viram em todo o Brasil: de repente os alunos de pós-graduação estavam assumindo a depressão, infelizmente, dezenas se suicidaram não só no Brasil, mas no mundo. As revistas científicas mais importantes estavam falando sobre doença mental na pós-graduação. Mas eu via esperança, porque alguém estava colocando isso à tona. Não dava mais pra maquiar esse tabu.
Com seis meses de prorrogação de prazo, eu concluí um doutorado interdisciplinar, com morfologia, anatomia, análises genéticas, modelagem em softwares… eu era fluente em inglês e em teorias científicas. Caraca! Eu era fod@ pra caralh@! Olhei pra trás e chorei muito, como agora, escrevendo esse texto. Eu vi a menina de 6 anos se imaginando nesse lugar e fiquei com compaixão por ela, porque ela não sabia o caminho árduo que iria atravessar. Todo o bullying, incompreensão, despreparo profissional e familiar que enfrentaria. Ela ia em algum momento, acreditar que era burra. Meu deus! Que coisa absurda e cruel para se acreditar! Mesmo assim, ela atravessou esse mar de provações, aprendendo a nadar quase no final. Ela agora era Doutora em Ecologia e Conservação, ela levantou tantas vezes que se sentia forte como uma rocha, se provou resiliente, destemida… e na dedicatória da tese, escreveu:
Dedico essa tese a todas as crianças não-típicas (TDAH, TDA, TEA, TAG, TOD, TOC, disléxicas, entre outros transtornos que dificultam a aprendizagem dentro de um modelo convencional de ensino) – incluindo meu afilhado Pedro, que vão precisar vencer um mundo que não faz sentido para elas, afim de realizar seus sonhos. Dedico e afirmo: é possível.
Compartilho minha estória com vocês para que
1. Procurem e aceitem ajuda;
2. Não sintam vergonha de quem são;
3. Não se comparem com os outros, porque cada pessoa é única;
4. Não desistam quando tudo parece ruir – há uma saída, eu juro!!
5. Encontrem a melhor forma de existir e ser funcional nesse mundo, porque você é a peça que falta em algum lugar e seus talentos fazem falta… e por fim,
6. QUE SE AMEM E SE ACEITEM, QUE VIVAM CONFORTÁVEIS EM SEUS CORPOS E MENTES.
Eu sei que não é fácil, mas todo mundo, até quem não tem TDAH, está vivendo suas batalhas diárias. Essa é a nossa jornada e devemos nos orgulhar dela.
Autoria: Day Pilatti